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Centro de Estudos e Pesquisas Psicobiofisicas

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O privilégio do azar

Por Diana Corso*

Na fila do caixa do supermercado, por várias vezes, disputei pelo privilégio do azar. Estabelecimento lotado, filas grandes e lentas, escolhemos uma: obviamente será aquela em que vai dar algo errado, o cartão que não funciona, um produto sem preço ou estragado. A fila que não escolhemos sempre anda mais rápido. Quando finalmente nossa vez chega, a fita da caixa registradora acaba e é preciso parar tudo para trocar. Certa feita, frente a essa situação, declarei em voz alta que só podia ser comigo, é sempre assim! Uma senhora que estava atrás de mim insistia em que o motivo do percalço era a presença dela. Assim, meio rindo, meio falando sério, ficamos discutindo o protagonismo daquele pequeno azar.

Essa demonstração pública de pessimismo, na qual reivindicamos ser a causa do que dá errado, é intrigante. Afinal, qual seria a vantagem em ser o escolhido para coisas ruins? Justamente porque se trata de vantagem: a ideia de que os pequenos azares substituem os grandes.

É comum ficarmos temerosos de que alguma catástrofe virá quando algo bacana está para acontecer. Para mim, não há férias em que não tenha o pressentimento de que uma desgraça vai me impedir de partir. É uma espécie de culpa, como se o prazer antecipado devesse ser punido. No fundo, me espreita o pânico de que o destino tome providências para impedir a realização desse desejo. Estaria certo usufruir desse prazer? Por que seríamos merecedores de um passeio, de um encontro muito esperado? Alguém vai aparecer para impedir, revelar nossos defeitos, vai levantar a mão como num casamento quando se pergunta se há alguém que se oponha à união. Ficamos pensando que talvez estejamos cometendo uma injustiça: será que não haveria outra pessoa que teria mais direito a esse privilégio?

É aqui que entra a utilidade dos revezes insignificantes: não serviriam para aplacar a ira do azar? Como se fossem oferendas: manda-se para a fogueira da culpa uma bobagem, esperando que ela queime no lugar de uma verdadeira desgraça. Depois disso, o que tinha para dar errado já foi.

Esse pessimismo de bolso acaba sendo um tributo ao otimismo. Com esses pensamentos estranhos, acreditamos estar controlando o destino, garantindo que será favorável, já que sacrificamos à desgraça alguma cota de tempo, paciência ou dinheiro. É bom saber que, apesar de resmungões, somos otimistas. Nesse sentido, concordo com Mia Couto que escreveu: “Pensava que quando se sonha tão grande a realidade aprende”.

Fonte: Vida Simples

*Diana Corso é psicanalista e autora do livro Fadas no Divã. Escreve há mais de dois anos para Vida Simples